O STF e a competência técnica para definição sobre campos eletromagnéticos

3/7/2013 –

Por Maria Alice Doria* e Erika Breyer**, sócias do Doria, Jacobina e Gondinho Advogados

Realizada no âmbito do Supremo Tribunal Federal e, convocada pelo Ministro Dias Toffoli, a audiência pública que discutiu os possíveis impactos dos campos eletromagnéticos emitidos por linhas de transmissão de energia elétrica, sobre o meio ambiente e a saúde humana encerrou-se em março, e ocorreu com o objetivo de colher subsídios à decisão que deverá ser tomada nos autos do Recurso Extraordinário 627189/SP, interposto pela Eletropaulo, e do qual o Ministro Toffoli é Relator.

No bojo do referido recurso, a concessionária paulista contesta decisão não unânime da Câmara de Meio Ambiente do TJSP, a qual determinou a redução, para o menor nível possível – 1,0 mµ (microtesla), adotado pela legislação suíça –, para campos eletromagnéticos gerados por linhas de transmissão de energia elétrica localizadas em dois bairros de São Paulo, em razão de alegado potencial cancerígeno da radiação produzida pelas estruturas elétricas.

Os desembargadores do TJSP valeram-se do “princípio da precaução” – segundo o qual, na hipótese de dúvida acerca da periculosidade de determinada atividade para o meio ambiente, deve-se decidir favoravelmente a este e contra o potencial poluidor –, para dar aplicação imediata aos artigos 225 e 5º, caput, ambos da Constituição Federal.

A solução adotada no acórdão paulista pode ser considerada louvável do ponto de vista ambiental ou de saúde, e estaria isenta de maiores questionamentos não fosse o seguinte ponto: seria o Poder Judiciário legitimado a decidir acerca do limite de exposição humana a campos magnéticos – isto é, sobre um critério de caráter eminentemente técnico –, o qual repercutirá não apenas sobre todo o setor elétrico – que deverá se adaptar ao novo limite estabelecido, como corolário do princípio da Isonomia e da recente tendência de reconhecimento de efeitos ultra partes das decisões proferidas em sede de controle difuso de constitucionalidade – mas também sobre todos os consumidores desse tipo de serviço – em razão do inevitável repasse dos custos incorridos na adaptação do setor –, ainda que a decisão do órgão judicial esteja respaldada por informações técnicas prestadas por especialistas da área por meio de Audiência Pública?

Tal questionamento torna-se ainda mais relevante se considerarmos que, com vistas a garantir a proteção da saúde e do meio ambiente em todo o território brasileiro, a Lei nº 11.934/99 determinou a adoção dos limites fixados pela Comissão Internacional de Proteção Contra Radiação Não Ionizante (ICNIRP) – recomendados pela Organização Mundial de Saúde – para a exposição humana a campos eletromagnéticos gerados por sistemas de energia elétrica, atribuindo, ainda, à agência reguladora federal de serviços de energia elétrica, ANEEL, a competência para editar regras sobre a matéria, o que efetivamente foi feito, por meio da Resolução ANEEL nº 398/2010, no âmbito da qual restou fixado valor correspondente a 83,3 mµ (microteslas) como limite máximo de exposição da população em geral a campos magnéticos.

Em outras palavras: no presente caso, verificou-se o afastamento, por parte do órgão judicial, da regulação estabelecida pela entidade legal e tecnicamente habilitada para tanto – isto é, a ANEEL –, sob o argumento de que o critério adotado por esta não era suficientemente seguro (princípio da precaução); mais do que isso, a autoridade judicial paulista foi além, ao determinar a aplicação do limite de exposição humana a campos eletromagnéticos em patamar por ela considerado confiável (1,0 mµ).

Há, ainda uma agravante: a Câmara de Meio Ambiente do TJSP entendeu que a ANEEL não era parte legítima a integrar o polo passivo da demanda, na medida em que a admissão desta como litisconsorte, assistente ou opoente somente se justificaria se o objeto da ação versasse sobre ato de sua atribuição. Dessa forma, a agência reguladora com atribuição para editar regulação sobre a matéria, conforme a competência estabelecida no art. 15 da Lei nº 11.934/09, sequer foi ouvida acerca da questão.

Inobstante tais circunstâncias, até o presente momento, a questão da legitimidade do Poder Judiciário para decidir acerca do limite de exposição humana a campos magnéticos não tem recebido a devida atenção no julgamento do Recurso Extraordinário nº 627189/SP. Ao revés, a atuação da Corte Suprema tem se voltado à coleta de informações técnicas acerca da matéria, dando indícios de que talvez seja a intenção deste órgão decidir acerca da adequação do limite de exposição estabelecido pela ANEEL, ou até mesmo, determinar o nível de exposição considerado seguro que deverá ser aplicado.

Cabe lembrar que, em situação bastante semelhante, na qual eram contestados judicialmente os critérios utilizados pela ANATEL para a definição do conceito de “área local”, para efeitos de cobrança da tarifa local de acordo com critérios técnicos e econômicos, o STJ decidiu que “ao adentrar no mérito das normas e procedimentos regulatórios que inspiraram a configuração das “áreas locais”, o Tribunal de origem invadiu seara atribuída à administração pública, atitude afrontosa aos freios impostos pelo princípio da separação dos Poderes”.

No presente caso, ressalta-se que o parâmetro adotado pela Lei nº 11.934/09, bem como pela Resolução ANEEL nº 398/2010, segue o padrão internacional de segurança estabelecido pela OMS, que recomenda a adoção de limites de campos elétricos e magnéticos definidos ICNIRP, e é adotado em mais de 30 países.

Inclusive, como base em recentes estudos sobre a exposição humana a campos magnéticos, a ICNIRP revisou sua diretriz sobre o assunto, aumentando o limite máximo de exposição admitido para a população em geral de 83,3 para 200 mµ (microteslas). A legislação brasileira, contudo, adotando uma postura mais rigorosa, manteve o limite anteriormente estabelecido.

Com efeito, a opção pelo padrão internacional de segurança estabelecido pela OMS, ao invés do índice mínimo de 1,0 mµ (microtesla) estabelecido no ordenamento suíço, trata-se de medida que pode até ser questionável, mas que, de forma alguma, pode ser rechaçada pelo Poder Judiciário, sob o argumento de ser inadequada. Tal avaliação caberia, em princípio, ao administrador, nos limites da Lei.

Web Site: